Bonecas ou filhos? Fenômeno dos bebês reborn alerta para limites emocionais

Fenômeno cresce entre adultos e levanta debates sociais e culturais sobre laços afetivos, controle e saúde mental

Publiciado em 07/06/2025 as 08:05

Bonecas extremamente realistas, que se assemelham a recém-nascidos e são conhecidas como bebês reborn, têm ganhado cada vez mais espaço na vida de muitos adultos. Elas não funcionam apenas como peças de coleção, mas também como objetos de afeto e até substitutos simbólicos de conexões emocionais. Contudo, essa fronteira entre o simbólico e o real pode se confundir: há relatos de pessoas que levam seus reborns a emergências hospitalares, confundindo profissionais da saúde ao apresentá-los como filhos em sofrimento.

Apesar da ausência de estatísticas oficiais sobre o número exato de donos dessas bonecas hiper-realistas, há indicativos de que a procura cresce. Por exemplo, a loja “Minha Infância”, em Belo Horizonte, tem um faturamento médio mensal de R$ 40 mil, vendendo até 200 unidades em datas comemorativas como Dia das Crianças e Natal. O valor dessas bonecas varia entre R$ 500 e R$ 4 mil, conforme o grau de detalhamento e personalização.

A psicóloga e docente da Universidade Tiradentes (Unit), Keziah Costa, ressalta que o fenômeno precisa ser analisado em sua totalidade. “O interesse crescente por bebês reborn entre adultos pode ser compreendido pela psicologia sob diversas perspectivas, levando em conta fatores sociais, culturais, subjetivos e econômicos. Ainda que os estudos acadêmicos sobre o tema sejam escassos, esse fenômeno não deve ser visto de forma isolada, mas sim como uma manifestação social relacionada a aspectos como classe, gênero, idade e raça, entendendo o indivíduo como um ser histórico e inserido em um contexto social amplo”, afirma.

A função simbólica e terapêutica

Segundo Keziah, cerca de 60% dos consumidores são mulheres adultas, muitas delas com renda acima da média, o que evidencia uma construção social que ainda associa o feminino ao cuidado, à maternidade e ao acolhimento. “O mercado, que muitas vezes apresenta o consumo como uma resposta ao sofrimento e à solidão, também fortalece o apelo dessas bonecas. Redes sociais e influenciadores reforçam a ideia de que a presença do reborn simboliza afeto e felicidade, tornando-o um objeto de desejo emocional”, destaca.

Sob a ótica da psicologia, especialmente pela perspectiva do psicanalista Donald Winnicott, o ato de brincar é fundamental para a saúde mental. “Mesmo na vida adulta, o brincar se manifesta na criatividade, na arte, no humor e na imaginação. O bebê reborn pode funcionar como um objeto transicional em certos contextos, ajudando na elaboração de lutos, na reorganização emocional e no amadurecimento psíquico”, explica Keziah.

O uso terapêutico dessas bonecas já ocorre em clínicas e lares para idosos, principalmente no cuidado de pacientes com demência. Nesse ambiente, a boneca atua como um instrumento de conforto simbólico, auxiliando no controle de crises de ansiedade e sentimentos de isolamento. “Em idosos, especialmente aqueles com demência, é comum a presença de comportamentos infantilizados, nos quais a boneca surge como um suporte emocional. O reborn pode ser uma forma encontrada por algumas pessoas para lidar com perdas, solidão e fragilidade emocional”, complementa a psicóloga.

Apesar dos benefícios potenciais, um apego excessivo e desproporcional ao bebê reborn pode ser prejudicial. Keziah alerta para os sinais que indicam que a relação ultrapassou o simbólico e passou a ser uma fuga da realidade. “Quando a pessoa demonstra forte resistência em se separar do reborn, sentindo tristeza ou ansiedade ao se afastar; quando há um investimento desproporcional no cuidado — como alimentar, dar banho ou levá-lo ao médico; quando deixa de buscar relações humanas, pois estar com o bebê é suficiente; e quando não reconhece a boneca como um objeto simbólico”, ela destaca.

Relações líquidas e o desejo de controle

De acordo com a psicóloga, a busca por vínculos afetivos sem riscos ou conflitos está relacionada a uma característica marcante da sociedade atual: o desejo de controle. “Cuidar de um bebê real exige renúncia, escuta, adaptação e lidar com frustrações. Já o bebê reborn oferece o oposto: uma relação previsível, sem demandas reais, que pode ser interrompida a qualquer momento. Ele representa a fantasia de onipotência, onde se pode amar sem esforço e ser amado sem frustração”, analisa Keziah.

Esse comportamento está conectado ao conceito de “relações líquidas”, definido pelo sociólogo Zygmunt Bauman, em que os laços são efêmeros e adaptáveis ao prazer individual. No caso dos reborns, a boneca pode simbolizar essa busca por um afeto idealizado e totalmente controlado.

Evitar julgamentos e acolher é fundamental

Em uma época marcada por diagnósticos excessivos, a especialista faz um alerta importante. “Hoje em dia, é comum a patologização de pessoas baseada em conteúdos das redes sociais, mas é essencial lembrar que diagnósticos de transtornos mentais devem ser realizados somente por profissionais capacitados, como psicólogos e psiquiatras, após uma avaliação rigorosa”, ressalta a psicóloga.

A motivação para adquirir um bebê reborn pode variar desde um passatempo inofensivo até uma tentativa de lidar com perdas profundas. Por isso, familiares e amigos devem observar com empatia. “Se houver sinais de isolamento, dependência emocional intensa ou sofrimento psíquico, é recomendável buscar ajuda psicológica. O apoio familiar é fundamental para a reconstrução emocional”, reforça.

Entre fantasia e realidade, esse fenômeno revela muito sobre as pessoas, sobre como enfrentam a dor, o afeto e as relações. “A escuta cuidadosa, a ausência de julgamentos e o suporte profissional são os caminhos mais responsáveis para lidar com essa nova manifestação do psiquismo humano que, seja hiper-realista ou não, evidencia necessidades reais”, conclui Keziah.

Autora: Laís Marques

Fonte: Asscom Unit