Mais um cafezinho?
Seja no copo térmico a caminho do trabalho, na pausa do meio da tarde ou naquela dose dupla de espresso depois do almoço, o café se tornou praticamente indispensável na rotina de milhões de brasileiros e bilhões de pessoas ao redor do mundo.
A importância da bebida ficou tão evidente que chegou ao centro da diplomacia internacional: em uma conversa recente entre Lula e Donald Trump, o café brasileiro entrou na pauta.
Segundo a BBC News Brasil, o presidente americano comentou que os Estados Unidos estão “sentindo falta” dos produtos brasileiros afetados pela tarifa de 50%, citando especificamente o café.
E essa dependência americana não é exagero: os Estados Unidos não produzem café em escala comercial e dependem das importações para atender a uma demanda que movimenta bilhões de xícaras por dia no mundo. O Brasil, maior produtor global e responsável por quase metade da oferta de arábica, é peça central nesse abastecimento.
Mas, do ponto de vista da Ciência, o que explica o fato de o café ter se tornado tão essencial, capaz de atravessar fronteiras, influenciar economias e até a diplomacia?
As pistas estão no cérebro e nos mecanismos neurobiológicos que os pesquisadores começam a desvendar.
Abaixo, entenda mais.
Circuitos de prazer e recompensa
Em números, a escala impressiona: o planeta bebe algo perto de 2,5 bilhões de xícaras por dia.
Segundo a Organização Internacional do Café (OIC), o consumo mundial do gão ultrapassa 177 milhões de sacas de 60 kg por ano, o que equivale a cerca de 485 mil sacas diariamente.
Só nos Estados Unidos, 66% dos adultos bebem café diariamente, um aumento de 7% desde 2020, conforme dados da National Coffee Association (NCA).
E o que sustenta esse apetite global é, antes de tudo, neurobiologia aplicada ao cotidiano: uma combinação de prazer aprendido, estado de alerta prolongado e foco intensificado.
A explicação começa por uma peça-chave do nosso relógio interno: a adenosina. Quando ela se acumula, o corpo entende que é hora de desacelerar.
ENTENDA: a adenosina é uma molécula que participa da produção de energia ao formar compostos como o ATP, usados pelas células para realizar suas atividades. Além disso, atua como uma mensageira química, regulando processos como o sono, o fluxo sanguíneo e o funcionamento do cérebro.
A cafeína, por sua vez, é um “impostor” elegante. Ela tem uma estrutura molecular parecida com a da adenosina e consegue se encaixar nos mesmos receptores.
Só que, ao fazer isso, bloqueia o sinal de cansaço sem realmente repor a energia gasta.
O resultado é uma falsa sensação de disposição: o cérebro acredita que ainda há "combustível", quando na verdade está apenas com o freio desligado.
É esse truque bioquímico que explica por que uma xícara de café desperta tanto, mesmo depois de um dia exaustivo.
“A ligação da cafeína com os receptores de adenosina melhora a nossa vigília porque diminui a sinalização de cansaço”, explica Antonio Herbert Lancha Junior, doutor em Nutrição e professor da Universidade de São Paulo (USP).
E é justamente por isso que conseguimos ficar acordados por mais tempo, mas com um preço: quando o sono finalmente chega, ele já não tem a mesma qualidade.
“A pessoa dorme, mas não tem o descanso compatível”, explica Lancha Junior.
Estudos com eletroencefalograma (EEG) mostram que a cafeína chega a mudar o ritmo das ondas cerebrais.
Ela reduz o padrão mais lento e relaxado, típico de quando estamos sonolentos, e favorece um estado de alerta maior.
Na prática, isso significa que o cérebro fica mais atento a estímulos: a visão parece mais nítida, o raciocínio acelera e a capacidade de processar informações aumenta.
Um estudo publicado na revista "JAMA Network Open" observou que até pequenas doses, entre 40 e 200 miligramas de cafeína - o equivalente a uma ou duas xícaras de café - já bastam para gerar efeitos perceptíveis.
Os voluntários relataram menos fadiga, maior disposição e responderam mais rapidamente a tarefas que exigiam atenção e coordenação.
Em testes de longo prazo, o desempenho também melhorou: a cafeína ajudou a manter a concentração por períodos mais extensos, algo especialmente útil para quem precisa estudar, dirigir ou trabalhar por horas seguidas.
É por isso que tanta gente sente que “só funciona” depois daquele clássico café da manhã.
O cérebro, ainda em ritmo de descanso, recebe um empurrão químico que engana o sistema de fadiga e o coloca em modo ativo.
Já a cafeína, por si só, não ativa diretamente o centro de recompensa do cérebro. Essa relação só aparece quando o consumo está ligado justamente ao prazer, por exemplo, quando a pessoa sente satisfação ao tomar café.
Estímulo químico ou ritual social?
Estudos recentes mostram que o café ativa no cérebro os mesmos circuitos de prazer envolvidos em outros comportamentos reforçadores, como ouvir música, fazer exercícios ou comer algo de que se gosta.
Essa ativação ocorre porque a cafeína estimula, de forma sutil, as vias dopaminérgicas, regiões responsáveis por sensações de bem-estar e motivação.
ENTENDA: as vias dopaminérgicas são como estradas dentro do cérebro que transportam a dopamina, uma substância ligada ao prazer, ao movimento e ao humor.
Mas o que mantém o hábito vai além da química. O ato de tomar café é também um comportamento moldado por contexto.
Segundo Manuela Dolinsky, nutricionista e presidente do Conselho Federal de Nutrição, o café carrega uma dimensão simbólica que o torna parte da vida social.
“Tomar café é quase sempre um comportamento situado: envolve o horário do dia, as pausas do trabalho, a interação social, o aroma, a temperatura e até o som da xícara”, explica.
E esses estímulos sensoriais e sociais criam uma experiência prazerosa que o cérebro aprende a associar a momentos de foco, descanso ou conexão: mesmo quando o efeito da cafeína já não é tão perceptível.
Dolinsky destaca ainda que, do ponto de vista neurobiológico, a cafeína promove pequenas ativações funcionais nas vias dopaminérgicas, tornando experiências de desempenho mais agradáveis e reforçadoras.
Por sua vez, esse mecanismo cria um componente de reforço positivo que favorece a repetição do comportamento. “A interação entre adenosina e dopamina faz com que os circuitos de motivação e recompensa também sejam modulados, aumentando a disposição para estudar, trabalhar ou treinar logo após o primeiro café”, resume.
Fonte:G1