Além da dieta: como a cultura e a escuta estão mudando a nutrição
Nova abordagem sociocultural enxerga a comida como símbolo de afeto, história e resistência, ressignificando a prática nutricional

Distante dos modelos engessados e puramente fisiológicos, uma visão mais ampla tem ganhado força ao reconhecer a alimentação como um componente cultural e social fundamental à existência humana. Esse olhar mais abrangente torna o atendimento nutricional não só mais humanizado, mas também mais eficiente e inclusivo, contribuindo para maior adesão aos tratamentos e promovendo saúde de forma integral. Comer não é apenas uma necessidade biológica, é um gesto carregado de memória, afeto e identidade.
Em um país plural como o Brasil, repleto de manifestações culturais e regionais, a alimentação ocupa papel central na construção da identidade. O cuscuz nordestino, o pão de queijo mineiro ou o acarajé baiano são mais do que pratos típicos são símbolos de pertencimento e raízes. O Guia Alimentar para a População Brasileira, elaborado pelo Ministério da Saúde, reforça essa compreensão ao tratar a culinária como expressão cultural e o ato de se alimentar, principalmente em grupo, como elemento que fortalece laços afetivos e sociais.
Ailton Sena Júnior, nutricionista clínico e esportivo, além de professor da Universidade Tiradentes (Unit), destaca que a comida também carrega memórias e afetos. “É o feijão feito do jeito da sua mãe, da sua avó. É o cuscuz com manteiga no café da manhã do interior. É a prece antes da refeição. O aroma da comida no fim do dia reúne a família”, exemplifica. Ele salienta que, especialmente em contextos vulneráveis, a comida simboliza não só identidade, mas também resistência e, muitas vezes, sobrevivência.
Quando comer vira narrativa e o risco de ignorar a cultura
Essa leitura modifica por completo a prática do nutricionista. Ailton relata que tanto em atendimentos particulares quanto no SUS, seu trabalho parte da escuta ativa e da valorização do cotidiano do paciente. “Não adianta impor uma dieta pronta e esperar que a pessoa se molde a ela. Eu começo ouvindo, observando o que tem na geladeira, na feira, o que a família sabe preparar”, comenta. No serviço público, esse cuidado se torna ainda mais necessário: é essencial alinhar o plano alimentar à cultura local, priorizar alimentos da agricultura regional e entender o que é realmente acessível. “Nutrição que dá certo é a que cabe na vida real”, resume.
Ignorar o lado cultural e emocional da comida pode criar distanciamento e dificultar o cuidado. O nutricionista alerta que desconsiderar o que os alimentos significam para o indivíduo ou grupo pode tornar a orientação nutricional excludente. “Já atendi pessoas que abandonaram o tratamento porque se sentiram mal por comer arroz com farinha e ovo. Aí perdemos uma oportunidade valiosa de cuidar. Quando a recomendação não respeita a vivência da pessoa, ela se rompe. A comida tem que acolher, não afastar”, pontua.
Da prática clínica às políticas públicas
As estratégias que funcionam são aquelas que rompem com a rigidez das prescrições e se conectam com a vida das pessoas. Na prática clínica, isso significa trabalhar com educação alimentar baseada no diálogo e, sempre que possível, usar a culinária como ferramenta de autonomia. Já na saúde pública, essa inovação se traduz em hortas comunitárias, oficinas culinárias, cardápios escolares adaptados à cultura local e ações educativas em UBS e CRAS. “Essa é a inovação de verdade: quando o papel vira prática e o plano alimentar vira conversa”, define Ailton.
Esse tipo de abordagem também ajuda na prevenção de transtornos alimentares e na diminuição da evasão de dietas. Em vez de classificar alimentos ou hábitos como corretos ou errados, ela busca compreender a realidade do paciente. “Uma mãe que reparte um pacote de biscoito com os filhos não precisa ouvir sobre macronutrientes. Ela precisa de políticas públicas eficientes e de um profissional que a escute”, diz. Segundo ele, o vínculo e a escuta são fundamentais no cuidado de pessoas com compulsão alimentar ou distorções da autoimagem, promovendo acolhimento e continuidade.
Adaptar o cuidado nutricional às diferentes crenças, culturas e realidades econômicas é um dos fundamentos dessa nova forma de atuar. “Entender a história do outro é o ponto de partida. Se a fé dita o que se come, eu escuto, não imponho. Se a renda é baixa, eu ajusto, não julgo. Se a insegurança alimentar está presente, eu acolho e encaminho”, explica Ailton, defendendo a escuta como etapa indispensável antes de qualquer prescrição.
Desafios para consolidar a abordagem
Mesmo com avanços, há obstáculos para que essa prática se torne padrão. Ailton observa que muitos cursos de Nutrição ainda formam profissionais baseados em modelos distantes da realidade brasileira, centrados em dietas idealizadas. Além disso, a falta de tempo nas consultas no SUS e a dificuldade de desenvolver uma escuta genuína são desafios constantes.
Ailton reconhece que algumas formações já incorporam essa visão mais próxima da realidade. Ele menciona o uso da Aprendizagem Baseada em Projetos (ABP) como forma de aproximar os estudantes de cenários concretos desde os primeiros semestres. “A realidade é outra. Quem está na UBS conhece o corre: pouco tempo, muita demanda, famílias em situação de insegurança alimentar. O profissional precisa sair do pedestal, parar de querer controlar tudo e começar a ouvir. Nutrição não é só cálculo, é cuidado. E cuidar começa com respeito e escuta”, afirma.
Essa perspectiva tem força para transformar políticas públicas. Segundo Ailton, quando essas políticas são pensadas a partir das demandas reais da população, a alimentação escolar, por exemplo, pode ser mais do que equilibrada nutricionalmente e pode ser também prazerosa e conectada à cultura. No combate à fome, isso se reflete na valorização dos alimentos regionais e no fortalecimento da produção local. “É uma política com identidade. E aí, sim, ela gera impacto de verdade”, defende.
Os benefícios para a saúde coletiva são evidentes quando se reconhece a alimentação como expressão cultural. As pessoas se sentem respeitadas, representadas e incluídas no processo de cuidado, o que melhora a adesão, reduz doenças e fortalece os laços sociais. “A saúde pública se transforma quando compreendemos que comida não é só nutriente, é também dignidade. E dignidade é essencial”, conclui Ailton. Para ele, ver uma mãe alimentando seus filhos com comida caseira, do jeito dela, com apoio e escuta, representa o verdadeiro sentido da saúde coletiva.
Por: Laís Marques
Fonte: Asscom Unit
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