Pesquisa avalia efetividade das medidas protetivas para mulheres em Sergipe
Levantamento examina quase três mil processos e indica a necessidade de melhorias para garantir proteção integral às vítimas

A violência doméstica continua sendo uma das formas mais graves de violação dos direitos humanos e representa um desafio constante para o sistema de justiça brasileiro. Entre os mecanismos criados para resguardar mulheres em situação de risco, as medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha ocupam papel central. No entanto, sua real efetividade na prevenção de novas agressões ainda é tema de debate, especialmente quando observada sob a prática cotidiana dos tribunais.
Atenta a essa problemática, a estudante de Direito da Universidade Tiradentes (Unit), Fernanda Gabriella Santos Vitório, desenvolveu uma pesquisa de iniciação científica baseada em processos judiciais envolvendo violência afetiva. O trabalho não se limitou a verificar o cumprimento das determinações judiciais, mas buscou compreender os fatores que afetam sua eficiência, como a postura das vítimas, a atuação do Judiciário e o apoio oferecido pela rede de proteção.
“A ideia surgiu do interesse em investigar a aplicação das medidas protetivas em Sergipe, com foco nos casos de descumprimento da decisão previstos no art. 24-A da Lei 11.340/06. Em várias situações, observou-se que a própria vítima autorizava a aproximação do agressor, ponto que também era considerado durante as audiências de custódia”, explicou Fernanda.
O estudo, intitulado “A violência nas relações afetivas e a proteção da mulher pela justiça: eficiência das medidas protetivas em Sergipe”, foi realizado entre novembro de 2023 e novembro de 2024 no âmbito do Programa de Bolsas de Iniciação Científica (PROBIC/Unit). Nesse período, foram reunidos dados relevantes que permitem refletir sobre os avanços e as falhas do sistema de proteção.
“Analisei dados sobre a concessão das medidas, prazos, reincidência, motivos que levam algumas vítimas a permitir a aproximação do agressor e a resposta do sistema de justiça local. Também procurei entender os obstáculos enfrentados pelas mulheres após pedirem proteção e verificar se a lei é acompanhada de apoio psicológico, social e institucional. Em resumo, o objetivo foi ir além da norma escrita e avaliar seu efeito concreto na vida das mulheres”, destacou a pesquisadora.
Metodologia e análise de dados
Para chegar aos resultados, Fernanda examinou relatórios da Defensoria Pública de Sergipe referentes ao período de 2021 a 2023. Ao todo, foram analisados cerca de 2.822 processos, dos quais 252 tiveram estudo mais detalhado. A pesquisa contou ainda com a orientação do professor Ermelino Costa Cerqueira e a colaboração voluntária da aluna Thasila Eduarda Correia Oliveira.
“Realizamos fichamentos de livros, doutrinas e artigos acadêmicos sobre o tema, o que contribuiu para a formação crítica necessária à investigação. Esse material serviu de base para organizar e sistematizar os dados referentes às prisões em flagrante de assistidos que receberam medidas protetivas em audiências de custódia ou que, mesmo já submetidos a restrições, voltaram a descumpri-las”, relatou.
A metodologia incluiu também a organização das informações em planilhas e consultas ao Sistema de Controle Processual Virtual do Tribunal de Justiça de Sergipe. Isso possibilitou mapear prazos de concessão, índices de reincidência, autorizações de reaproximação concedidas pelas próprias vítimas e fundamentos jurídicos das decisões. Os resultados mostraram que, na maioria dos casos, as medidas protetivas são deferidas logo no início do processo, o que, para Fernanda, representa um avanço do Judiciário sergipano. “Ainda na fase inicial da denúncia, as cautelares costumam ser concedidas para garantir a integridade da vítima. Isso demonstra uma preocupação crescente em proteger a mulher desde o primeiro momento”, pontuou.
Desafios e possíveis soluções
Apesar dos avanços, o estudo também evidenciou limitações importantes na efetividade das medidas protetivas. Segundo Fernanda, a demora em algumas concessões e as falhas na fiscalização ainda comprometem a segurança das vítimas. “O sistema de justiça continua muito centrado no aspecto processual e não consegue articular de forma ampla uma rede de proteção, o que mantém muitas mulheres expostas a novos ciclos de violência”, avaliou.
Ela ressalta que a superação dessas dificuldades passa pela integração entre Judiciário, segurança pública e assistência social. “É essencial investir em políticas públicas preventivas e ampliar o suporte psicológico e social, para que as medidas não se restrinjam à proteção imediata, mas também atuem na prevenção da reincidência e na ruptura do ciclo de agressões, evitando situações em que as próprias vítimas autorizem a reaproximação do agressor e o descumprimento do art. 24-A da Lei Maria da Penha”, concluiu.
A pesquisadora reforça que os dados evidenciam a necessidade de aprimoramentos constantes. “Proteger a mulher vai além da aplicação da lei: exige um compromisso institucional com sua dignidade e seus direitos humanos”, enfatiza. Entre as propostas, ela sugere a capacitação contínua de profissionais, o fortalecimento da rede de apoio, a ampliação dos canais de denúncia e o investimento em políticas públicas de prevenção. Para Fernanda, a pesquisa pode subsidiar futuros trabalhos e contribuir para a formulação de políticas públicas em Sergipe. “O impacto social do estudo está em trazer visibilidade a esse problema e colaborar para melhorias na atuação judicial e nos serviços de apoio às mulheres”, completou.
Impacto social da pesquisa
Além de sua relevância acadêmica, o trabalho também apresenta forte dimensão social, especialmente no contexto sergipano. Para a autora, os resultados podem servir como base para aprimorar políticas públicas e práticas do sistema de justiça. “A pesquisa dá visibilidade a essa realidade e pode sustentar debates e ações que fortaleçam os direitos das mulheres e tornem os mecanismos de proteção mais efetivos”, afirmou.
A escolha do tema, segundo Fernanda, está ligada tanto ao interesse acadêmico quanto a experiências pessoais. Durante a graduação em Direito, ela percebeu a urgência do debate e sua relevância social. “Sempre tive sensibilidade para questões de direitos humanos e violência de gênero. Esse estudo me permitiu aprofundar essa visão e buscar respostas para uma realidade que ainda impõe tantos desafios às mulheres”, relatou.
Com a experiência adquirida, Fernanda pretende dar continuidade à pesquisa em sua trajetória acadêmica, transformando-a em pré-projeto de mestrado e, futuramente, em doutorado. Para ela, a iniciação científica foi fundamental no desenvolvimento do pensamento crítico, da análise de dados e de uma postura investigativa.
Ao refletir sobre os principais aprendizados, a estudante afirma que a pesquisa lhe proporcionou autonomia e um olhar crítico mais apurado. “Entendi a importância da pesquisa como instrumento de transformação social, especialmente ao avaliar a eficácia das medidas protetivas e o papel da justiça na defesa dos direitos das mulheres. Além disso, desenvolvi competências práticas como elaboração de projetos, levantamento bibliográfico, análise de dados e produção científica”, concluiu.
Por: Laís Marques
Fonte: Asscom Unit