O papa Leão XIV manifestou preocupação com “algumas coisas” que estão acontecendo nos Estados Unidos e revelou que recusou planos para uma versão de si mesmo em inteligência artificial em sua primeira grande entrevista desde que foi eleito como pontífice.
O primeiro papa americano destacou a importância de uma carta que seu antecessor, o papa Francisco, enviou aos bispos dos EUA no início deste ano, repreendendo os planos de deportação de imigrantes do governo Donald Trump.
“Fiquei muito feliz em ver como os bispos americanos receberam isso, e alguns deles tiveram coragem suficiente para seguir adiante”, disse ele, referindo-se aos comentários públicos feitos após a carta.
Mas Leão insistiu que não vai se envolver em “política partidária”, afirmando que cabe aos líderes da Igreja nos Estados Unidos tomar a dianteira no engajamento com o governo Trump.
Eleito em maio deste ano, Leão concedeu a entrevista a Elise Allen, correspondente sênior do site católico Crux, para sua biografia, “Leão XIV: Cidadão do Mundo, Missionário do Século XXI”.
A visão papa americano sobre o presidente americano
Leão disse que ainda não teve nenhum contato direto com o presidente Donald Trump, embora tenha ressaltado que seu irmão mais velho, Louis Prevost, já se reuniu com Trump na Casa Branca.
Ele disse ser “muito próximo” de seus irmãos, “mesmo que um esteja em uma ponta política e eu em outra, estamos em lugares diferentes”.
O papa afirmou que há “algumas coisas acontecendo nos Estados Unidos que são preocupantes” e que “às vezes as decisões são tomadas mais com base em economia do que na dignidade e no apoio humano”.
Entende-se que algumas das principais preocupações de Leão em relação ao governo Trump dizem respeito à imigração, tema que ele abordou em encontro com o vice-presidente dos EUA, JD Vance.
Leão disse não ter medo de “levantar questões”, de “continuar a desafiar” e de se engajar diretamente com Trump se tiver oportunidade. Ele afirmou que, ao contrário de seu antecessor argentino, “o fato de eu ser americano significa, entre outras coisas, que não podem dizer, como diziam sobre Francisco, ‘ele não entende os Estados Unidos, ele simplesmente não vê o que está acontecendo’.”
Ele ressaltou que gostaria de “apoiar” Trump em seus esforços de “promover a paz no mundo”.
Mas afirmou que pretende se engajar principalmente com os bispos dos EUA, não vai “se envolver em política partidária” e, quando perguntado se o fato de ser um papa americano poderia lhe dar mais influência com Trump, respondeu: “Não necessariamente.”
Leão sinaliza que será menos combativo com Trump do que seu antecessor, mas que não terá medo de se manifestar quando necessário. Antes de sua eleição, ele havia republicado postagens críticas a Trump e Vance.
Papa Leão diz não ao “eu artificial”
O líder dos 1,4 bilhão de católicos abordou um tema que teria deixado seus antecessores perplexos: a inteligência artificial.
O papa quer que a Igreja “se manifeste” sobre o assunto, alertando contra “os super-ricos que estão investindo em inteligência artificial, ignorando totalmente o valor dos seres humanos e da humanidade”.
Leão disse ter recusado planos para criar um “eu artificial”, que permitiria que “qualquer pessoa acessasse um site e tivesse uma audiência pessoal com ‘o papa’” e recebesse respostas a perguntas.
“Eu disse: ‘Não vou autorizar isso.’ Se há alguém que não deve ser representado por um avatar, eu diria que o papa está no topo da lista”, explicou. Ele não detalhou quem apresentou a proposta.
Ele enfatizou não ser contra a IA, mas disse que perder a relação entre fé e ciência “deixará a ciência como uma casca fria e vazia”.
Papa evita declarar genocídio em Gaza
O papa Leão levantou a possibilidade de que esteja ocorrendo genocídio em Gaza, dizendo que “a palavra genocídio tem sido usada cada vez mais”.
No entanto, ele evitou afirmar isso explicitamente, apesar das crescentes acusações internacionais. Nesta semana, uma investigação independente da ONU concluiu pela primeira vez que Israel cometeu genocídio contra palestinos em Gaza, em um relatório que o governo israelense rejeitou como “distorcido e falso”.
Leão, falando em julho, disse: “Oficialmente, a Santa Sé não acredita que possamos fazer qualquer declaração neste momento sobre isso. Existe uma definição muito técnica sobre o que pode ser genocídio, mas cada vez mais pessoas estão levantando a questão, incluindo dois grupos de direitos humanos em Israel que fizeram essa afirmação.”
Ele descreveu a situação em Gaza como “muito, muito grave”.
Abusos clericais são assunto “não resolvido”
Leão disse que o abuso clerical é “uma crise real” que precisa continuar sendo enfrentada e que é algo “não resolvido”.
A Igreja, disse ele, deve mostrar “profunda sensibilidade e compaixão pela dor e pelo sofrimento que as pessoas suportaram nas mãos de ministros da Igreja”.
Mas também afirmou que o abuso não pode se tornar “o foco central da Igreja”, que os acusados têm direitos e que às vezes houve casos de falsas acusações.
Ensino da Igreja sobre sexualidade não deve mudar
Leão afirmou que continuará a acolhida de Francisco aos católicos LGBT+, mas acrescentou que o ensinamento da Igreja sobre sexualidade é “muito improvável” que mude.
“O que estou tentando dizer é o que Francisco disse muito claramente quando dizia ‘todos, todos, todos’ — todos são convidados, mas não convido alguém porque é ou não de uma identidade específica”, disse. “Eu convido uma pessoa porque ela é filha ou filho de Deus.”
O papa indica que vai continuar com cautela a abordagem de Francisco, mas estabelecendo limites.
Ele levantou preocupação de que, em partes do norte da Europa, algumas igrejas estivessem publicando rituais formais de bênçãos para casais do mesmo sexo, o que, segundo Leão, contraria a abertura de Francisco nessa área. Em 2023, Francisco permitiu bênçãos informais e não litúrgicas de casais do mesmo sexo por um padre.
Leão também disse que a “família tradicional” – pai, mãe, filhos – precisa ser apoiada.
Papel das mulheres “precisa continuar a se desenvolver”
Leão afirmou que continuará promovendo mulheres a cargos de liderança e que a compreensão sobre o papel das mulheres “precisa continuar a se desenvolver”.
Ele disse: “Espero continuar nos passos de Francisco, inclusive na nomeação de mulheres para alguns cargos de liderança em diferentes níveis da vida da Igreja.”
Sobre a ordenação de mulheres diáconas – membros do clero, mas não sacerdotes – disse que não pretende fazer mudanças “no momento”, mas quer “continuar ouvindo as pessoas” e permitir que grupos de estudo continuem examinando a questão.
“Vamos caminhar com isso e ver o que acontece”, acrescentou.
Política sobre China deve ser mantida
Leão disse que continuará, no curto prazo, com a política de aproximação diplomática e diálogo com Pequim “que a Santa Sé tem seguido já há alguns anos”. Mas acrescentou que está em “diálogo contínuo com várias pessoas, chinesas, de ambos os lados de algumas das questões que existem”.
Em 2018, o Vaticano assinou um acordo secreto com a China sobre a nomeação de bispos, que se entende dar a Pequim certa influência nas indicações episcopais.
O acordo nunca foi totalmente divulgado e continua sendo controverso. Os católicos chineses devem escolher entre frequentar igrejas sancionadas pelo Estado ou congregações clandestinas.