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Saúde

Quais são os desafios da ciência para desvendar o autismo?

Desconhecimento sobre a “causa” exata por trás dessa neurodivergência favorece a desinformação e dificulta o desenvolvimento de tratamentos mais direcionados

Por Redação Sergipe Notícias Publicado em 03/11/2025 às 10:32
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Quais são os desafios da ciência para desvendar o autismo?

Apesar de décadas de pesquisa, o Transtorno do Espectro Autista (TEA) continua sendo um dos maiores enigmas da medicina. Em pouquíssimos casos um exame específico é capaz de apontar com precisão sua origem, e a ciência ainda não chegou a um consenso sobre o que realmente desencadeia o transtorno. Essa lacuna no conhecimento abre espaço para dúvidas, teorias equivocadas e até falsas promessas de cura — terreno fértil para a desinformação florescer nas redes sociais e confundir famílias em busca de respostas.

Em setembro, uma fala do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, alegando que a ingestão de paracetamol por gestantes era responsável por “causar” autismo contribuiu para aumentar a insegurança na população. Mas esse argumento não tem embasamento científico. “Pesquisas extensas foram realizadas na última década investigando as ligações entre o uso de paracetamol e o autismo e, até o momento, nenhuma associação consistente foi estabelecida”, disse, em nota, a Organização Mundial da Saúde (OMS).

No Brasil, o Ministério da Saúde afirmou, em comunicado, que a divulgação de conteúdos com essa associação é “irresponsável e pode causar pânico e prejuízo para mães e filhos.” Segundo os dados do Censo de 2022 levantados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o país conta com aproximadamente 2,4 milhões de pessoas diagnosticadas com autismo. No cenário global, a OMS estima que a prevalência do transtorno seja de um a cada 127 indivíduos.

Um estudo de 2025, conduzido pela Fundação Getulio Vargas (FGV) em parceria com a Associação Nacional para Inclusão das Pessoas Autistas (Autistas Brasil), aponta que o volume de informações falsas sobre o TEA na internet cresceu mais de 15.000% entre 2019 e 2024 na América Latina e no Caribe, sendo que o Brasil lidera o número de publicações e comentários conspiratórios.

Foram identificadas pelo menos 150 falsas causas relacionadas ao autismo, dentre as quais estão alegações infundadas sobre o consumo de salgadinhos industrializados, a exposição à radiação 5G e a aplicação de doses de vacinas. Também foram descobertas 150 falsas “curas” para o transtorno, incentivando, por exemplo, terapias com eletrochoque e ingestão de substâncias tóxicas, como dióxido de cloro e prata coloidal.

Para o psicólogo Guilherme Bracarense Filgueiras, professor na Universidade Estadual de Londrina (UEL), no Paraná, essas suposições aproveitam o fato de o autismo ainda ser considerado um mistério da medicina, e vão na contramão dos caminhos necessários para embasar descobertas concretas. “As afirmações não baseadas no rigor científico procuram gerar impacto e engajamento, principalmente nas redes sociais”, pontua.

Mas essas falas não são inofensivas — sobretudo quando vêm de figuras públicas. “Falsas associações alimentam a culpa e o sofrimento entre as mães de crianças com autismo, que podem passar a acreditar erroneamente que suas escolhas durante a gestação contribuíram para o diagnóstico”, observa a médica neuropediatra Marcela Rodríguez de Freitas, professora na Universidade Federal Fluminense (UFF), no Rio de Janeiro, e secretária do Departamento Científico de Neurologia Infantil da Academia Brasileira de Neurologia (ABN).

A recusa a vacinas e medicações pode resultar em infecções não tratadas e ausência de profilaxia contra doenças preveníveis, aumentando o risco de problemas congênitos, parto prematuro e até mortalidade materna e fetal.

Por que é um mistério

O autismo pode ser considerado um “enigma” por diversas razões. Uma delas é sua causa exata: a ciência já avançou significativamente na compreensão dos fatores associados ao transtorno, mas isso não equivale a conhecer sua origem.

De acordo com Filgueiras, por volta das décadas de 1950 e 1960, algumas teorias da psicologia defendiam que o autismo resultava de uma infância negligente. A “teoria da mãe-geladeira”, como ficou conhecida, sugeria que as crianças que apresentavam características que hoje são associadas ao autismo tinham falta de calor emocional parental, principalmente materno.

Com o avanço dos estudos sobre o tema, essa visão foi substituída por hipóteses embasadas em experimentos científicos replicáveis. Em 1977, um estudo publicado no periódico The Journal of Child Psychology and Psychiatry, que analisou gêmeos e suas famílias, demonstrou que a herdabilidade do autismo era alta e apontou uma forte influência genética na condição.

“Desde então, permitiu-se reconhecer causas genéticas específicas, como mutações patogênicas raras envolvendo um ou poucos genes, em aproximadamente 20% a 25% dos casos de autismo, dependendo da população estudada”, explica a bióloga Andréa Laurato Sertié, pesquisadora do Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein (IIEP). Mas essas alterações não respondem tudo, já que representam apenas uma pequena fração dos casos. “Não há uma única mutação genética encontrada de forma recorrente em todos os indivíduos com TEA”, resume Sertié.

Acredita-se que a neurodivergência siga, na maioria dos casos, um modelo poligênico e multifatorial. Isso significa que diferentes mutações genéticas podem não causar o autismo por si só, mas quando somadas ultrapassam um determinado limiar de susceptibilidade, que resulta na manifestação do autismo. Muito provavelmente, esse processo ainda ocorre pela interação com fatores ambientais.

Diferentes pesquisas destacam evidências de que idade avançada dos pais, infecções virais ou bacterianas graves durante a gestação, complicações obstétricas e exposição a determinadas substâncias tóxicas podem influenciar o desenvolvimento do TEA. Um trabalho publicado em 2015 no Journal of Developmental & Behavioral Pediatrics identificou que indivíduos com TEA que apresentam variantes genéticas raras de risco e cujas mães sofreram com infecções durante o período gestacional apresentam déficits mais acentuados na interação social e nos comportamentos repetitivos. Tais achados sugerem uma importante interação entre genes e ambiente inflamatório no desenvolvimento do transtorno.

Melhorias no diagnóstico

Os avanços nos estudos do autismo também trouxeram mudanças nas abordagens de diagnóstico, uma vez que se entendeu o quão heterogêneo ele pode ser. “Os sintomas e o grau de comprometimento da condição variam amplamente entre os indivíduos afetados. Enquanto alguns apresentam déficits significativos de comunicação e comportamento, outros têm habilidades cognitivas preservadas ou até acima da média”, explica Andréa Sertié, que também é professora da Faculdade Israelita em Ciências da Saúde Albert Einstein (FICSAE).

Para acompanhar essas mudanças no olhar para o autismo, a Sociedade Brasileira de Neurologia Infantil (SBNI) divulgou, em setembro, novas diretrizes para diagnóstico e tratamento do TEA. O manual atualiza as formas de verificar o desenvolvimento de linguagem e a capacidade de socialização dos indivíduos, além de reconhecer padrões comportamentais restritos e repetitivos.

O diagnóstico continua sendo essencialmente clínico, baseado na observação direta da criança e na entrevista com os pais e cuidadores. A diferença é que, agora, a entidade também enfatiza a importância de considerar fatores ambientais, sociais e familiares que possam provocar a manifestação de sintomas associados ao autismo em crianças neurotípicas, como o atraso no desenvolvimento da linguagem e as dificuldades de regulação emocional.

A SBNI recomenda que o rastreamento do autismo comece mais cedo, entre 14 e 16 meses de vida. A condução de um exame neurológico tornou-se obrigatória para confirmar o diagnóstico, já análises laboratoriais e de imagem só devem ser solicitadas em casos específicos, nos quais há suspeita de outras condições.

Essas diretrizes também avançam na indicação de exames genéticos, como o microarranjo genômico e o sequenciamento completo do exoma, para melhor compreensão das causas e do risco familiar do transtorno.

A SBNI orienta ainda que o nível de suporte do TEA não seja definido em bebês ou logo após o diagnóstico, pois as necessidades da criança podem variar durante seu crescimento. Essa classificação é feita em três níveis, que apontam quanto suporte a pessoa com autismo pode precisar para realizar suas atividades.

Alguém com nível 1 de suporte costuma apresentar sintomas leves do transtorno e consegue viver de maneira mais autônoma. Já uma pessoa com nível 3 pode enfrentar mais dificuldade para socializar, aprender ou desempenhar atividades mais complexas. É possível que precise do apoio contínuo de um familiar ou cuidador.

Esperança de tratamentos mais direcionados

Embora o autismo não seja considerado uma doença, o tratamento é importante para garantir qualidade de vida àqueles com o transtorno. Segundo Filgueiras, atualmente, o tratamento padrão passa por intervenções comportamentais e educacionais intensivas, baseadas na abordagem de Análise do Comportamento Aplicada (ABA), e outras terapias voltadas ao desenvolvimento da comunicação, autonomia, integração sensorial e habilidades sociais”.

Já do ponto de vista da intervenção farmacológica, não existe um tratamento único e eficaz para tratar os sintomas centrais do TEA. “Mas os avanços na compreensão dos mecanismos biológicos subjacentes ao transtorno vêm permitindo uma estratificação mais precisa dos pacientes, com a identificação de subgrupos que compartilham perfis genéticos e moleculares específicos”, detalha a pesquisadora do Einstein.

Tal diferenciação é fundamental para oferecer um aconselhamento genético mais preciso às famílias e viabilizar o desenvolvimento de abordagens terapêuticas mais direcionadas. Alguns ensaios clínicos concluídos ou em andamento já apresentam resultados promissores, mesmo que limitados a pacientes com quadros clínicos específicos.

Um exemplo são os estudos sobre a leucovorina, uma forma ativa do ácido fólico (vitamina B9, também conhecida como folato). Ensaios clínicos sugerem que, quando utilizada como suplementação em indivíduos com TEA que apresentam disfunções no metabolismo desse nutriente, ela pode promover melhorias na linguagem, na cognição e no comportamento.

“No entanto, é importante enfatizar que esses efeitos não representam uma ‘cura’ do autismo, mas, sim, uma modulação de sintomas em um subgrupo com um perfil biológico bem definido”, frisa Andréa Sertié. “Esse tipo de abordagem está alinhado aos princípios da medicina de precisão, que, em vez de buscar soluções genéricas que desconsideram a heterogeneidade do transtorno, tenta desenvolver intervenções específicas e direcionadas a subtipos biológicos e genéticos do TEA.”

Daí porque a decisão da Food and Drug Administration (FDA), dos Estados Unidos, de revisar o rótulo desse medicamento para permitir que ele seja usado de maneira generalizada em crianças autistas gerou polêmica recentemente. O produto está liberado para tratar apenas condições metabólicas específicas, como a deficiência de folato cerebral, e complementar os cuidados em alguns protocolos de quimioterapia.

Os casos de autismo que apresentam disfunções no metabolismo dessa vitamina são poucos. Portanto, nem todas as pessoas obteriam benefícios com ela. “O uso da leucovorina deve ser restrito a casos bem documentados de deficiência de folato cerebral, com diagnóstico confirmado, e não deve ser considerado um tratamento universal para o autismo”, observa Marcela Freitas, da ABN.

Idealmente, o manejo do transtorno deve ser multidisciplinar, individualizado e contínuo, considerando habilidades, dificuldades e prioridades de cada pessoa. Isso pode envolver a dedicação de profissionais de fonoaudiologia, terapia ocupacional, terapia comportamental, psicopedagogia, psicomotricidade, nutrição e outras áreas complementares, variando conforme a necessidade.

“Nos últimos anos, a medicina vem se aliando a outras áreas para construir abordagens éticas, humanizadas e participativas. Esse diálogo tem sido essencial para combater preconceitos”, avalia Freitas. “O foco atual está em respeitar as diferenças, oferecer apoio adequado e promover aceitação social, entendendo que o autismo, bem como outros transtornos do neurodesenvolvimento, representa a diversidade humana.”

 

 

Fonte: Agência Einstein

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