Todos os dias, milhões de brasileiras precisam usar boa parte de seu tempo nos cuidados com a casa e com a família. O tempo dedicado aos afazeres de lavar, cozinhar, limpar, acompanhar os filhos na escola, cuidar de idosos ou de pessoas com alguma doença crônica. Essas atividades, que fazem parte do cotidiano de milhões de brasileiras, estão no centro de um debate cada vez mais presente nas universidades, nas políticas públicas e até nos tribunais. Trata-se da chamada “economia do cuidado”, expressão usada para descrever o conjunto de tarefas essenciais ao bem-estar das famílias, mas que, na maioria das vezes, não são remuneradas e recaem quase exclusivamente sobre as mulheres.
O tema ganhou projeção nacional após ser abordado na redação do Enem de 2023, mas já vinha sendo discutido há anos em círculos acadêmicos e jurídicos. E já começa a provocar mudanças na interpretação das leis e nas decisões de casos que chegam à Justiça. Em alguns estados, como São Paulo e Paraná, magistrados têm proferido sentenças que levam em conta o tempo dedicado pelas mulheres às tarefas domésticas e familiares na hora de definir valores de pensão e partilha de bens em casos de separação.
A professora Acácia Lélis, do curso de Direito da Universidade Tiradentes (Unit), atribui essa mudança de postura ao Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, baixado e adotado a partir da Resolução 492, baixada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Ele determina que juízes e magistrados analisem processos levando em conta as desigualdades entre homens e mulheres.
“Essa determinação é para que os magistrados, e o Judiciário de uma forma geral, ampliem a lente para visualizar a desigualdade de gênero nessas relações e na atribuição do cuidado em relação aos filhos e demais pessoas dependentes na família. É importante que nós, como advogados, tragamos o pedido para a aplicação desse protocolo, que é obrigatório. E ainda que não façamos, cabe ao Judiciário aplicar, vislumbrando aí que não há uma situação de igualdade”, explica a professora, considerando-a como “um grande avanço”. .
Tal desigualdade aparece, na prática, em várias situações do cotidiano, inclusive em processos judiciais de separação e guarda de filhos. Na maioria dos casos, a criança sempre é colocada para morar com a mãe, mesmo que se estabeleça uma guarda compartilhada ou que a visita do pai seja determinada em dias fixos da semana. “A criança tem uma necessidade X e muitas vezes o dever dos pais é o dever do sustento em relação a esse filho. Se você vai dividir a responsabilidade entre os pais, tem que quantificar o trabalho que a mãe exerce em relação àquele filho com tarefas e ensinando as tarefas da escola, levando e trazendo aquela criança para o médico, a terapia, a escola, etc. Tudo isso deve ser também observado na quantificação dos alimentos”, detalha Acácia.
Na visão da professora, isso ocorre porque ainda persiste na sociedade a ideia de que o cuidado é uma responsabilidade feminina. Um conceito, que segundo ela, deve ser levado em consideração e modificado. “Observando que isso tem a ver exatamente com essa atribuição que geralmente a nossa sociedade delega às mulheres: a responsabilidade do cuidado. Isso é histórico, é cultural e a gente precisa estabelecer aí critérios de igualdade, visando assegurar que as mulheres tenham igual espaço na sociedade, no mercado de trabalho, e que possam dividir essas responsabilidades também com os demais parentes”, argumenta.
Razões para mudar
A desigualdade de gênero motivada pela “economia do cuidado” se manifesta em números. Um levantamento do Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (IRI/PUC-RJ), baseado em dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), diz que cerca de 2,5 milhões de mulheres deixaram o mercado de trabalho em 2023 para se dedicar integralmente à casa e aos familiares — número muito superior ao de homens na mesma condição, estimado em apenas 80 mil. A diferença equivale a 96,9% contra 3,1%, revelando o tamanho do desequilíbrio.
Outro estudo, feito pela ONG feminista Think Olga, diz que as mulheres brasileiras — mesmo aquelas que têm emprego fora de casa — dedicam mais de 61 horas semanais a tarefas não remuneradas. Se esse tempo fosse convertido em valor financeiro, corresponderia a 11% do Produto Interno Bruto (PIB) do país, superando setores como a agropecuária e parte da indústria.
“Geralmente, quem tem esse cuidado com os familiares, que exerce plenamente esse conjunto de atividades com pessoas idosas, com os filhos, com as pessoas com deficiência, são as mulheres, as mães, etc. A economia do cuidado é exatamente isso: um conjunto de ações em que uma pessoa vai exercer para o bem-estar de uma terceira pessoa. Na maioria das vezes, ele não é remunerado. Por isso, é importante que se dê visibilidade a essa economia do cuidado”, explica a professora Acácia Lélis.
Esses números revelam o impacto da falta de reconhecimento e de remuneração do trabalho doméstico na vida das mulheres, sobretudo entre as mais pobres. Muitas vezes, quando delegam parte das tarefas, elas contratam outras mulheres para executá-las — e geralmente por valores muito inferiores aos pagos em outras ocupações. Segundo a professora, o funcionamento da economia depende justamente desse cuidado invisível.
“Imagine que, se não existisse alguém que cuidasse, como é que alguém vai se profissionalizar? Sempre tem que ter alguém para exercer essa atividade. Então é necessário dar visibilidade a esse cuidado que não é remunerado. Se eu deixo de exercer outras atividades, de trabalhar fora de casa, eu preciso ser também remunerado ou quantificado nesse tipo de trabalho, que é tempo, é um trabalho tanto emocional, tem desgaste físico e psicológico, e tira das mulheres de uma forma geral a oportunidade de crescer e se desenvolver profissionalmente”, sustenta Acácia.
Autor: Gabriel Damásio
Fonte: Asscom Unit
Historicamente, o serviço de cuidar da casa e da família tem sido assumido pelas mulheres, mesmo quando elas delegam o serviço a uma terceira pessoa (Agência Brasil)




