O antigo Hospital Psiquiátrico Adauto Botelho, que funcionou durante 52 anos no bairro Getúlio Vargas, em Aracaju, é lembrado até hoje como um símbolo da época em que a internação em manicômios e outros métodos controversos eram adotados para lidar com as doenças e transtornos de saúde mental. Essa história foi reconstituída em uma pesquisa de iniciação científica realizada entre 2023 e 2024 por Amanda Brito de Matos, então estudante do curso de Psicologia da Universidade Tiradentes (Unit).
A autora, que concluiu o curso no ano passado e atua hoje como psicóloga clínica, teve acesso a documentos oficiais, artigos, trabalhos científicos e reportagens produzidas por jornais e revistas da época. O trabalho, orientado pelo professor José Marcos Melo dos Santos e com a participação de Gustavo César Xavier Abbehusen Costa, também aluno de Psicologia, contou com o apoio do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica da Unit (Probic) e foi apresentado na 26ª Semana de Pesquisa da Unit (26ª Sempesq), em novembro do ano passado.
A partir de uma perspectiva histórica e contemporânea, Amanda propõe uma análise crítica sobre os processos de institucionalização manicomial em Aracaju, questionando a eficácia, impactos e implicações éticas dessas práticas na sociedade e na vida das pessoas com transtornos mentais. “Desde sempre, eu vi a Psicologia pelos olhos da História. Como filha de historiador, entendo toda forma de ciência pelo ponto histórico e social que a localiza. Assim, para entender melhor o funcionamento do sistema de saúde mental em Sergipe, era necessário um retrato real do histórico dele”, diz ela.
O Hospital Adauto Botelho foi criado em 1954 para substituir o antigo “Hospital Colônia de Psicopatas” existente desde a década de 1940 (e que estava em crise na época). A sua estrutura e rotina de funcionamento seguiam a lógica adotada na época para o tratamento de pessoas que eram apontadas como “doentes mentais”: leitos insuficientes, ausência de terapias adequadas, uso indiscriminado de medicamentos e tratamentos hoje abolidos, como o de eletrochoque. Uma situação que foi se degradando ainda mais ao longo dos anos, a ponto de ser comparado aos campos de concentração criados pelos nazistas para exterminar os judeus durante a Segunda Guerra Mundial.
Esta comparação foi feita em 29 de março de 1979 pelo pediatra José Machado de Souza, que visitou o hospital dias depois de ser nomeado secretário estadual de Saúde pelo então governador Augusto Franco. E se alarmou com o que viu. “A situação, hoje, do Adauto Botelho é mais desumana que alguns campos de concentração alemães, como por exemplo Treblinka”, disse Machado, em entrevista registrada pelo Jornal de Sergipe. Após a visita, o governo transferiu parte dos pacientes para a Clínica Psiquiátrica Garcia Moreno, em Nossa Senhora do Socorro. Apesar da comoção, o Hospital só foi fechado entre 1994 e 1996. Em 2008, o prédio foi cedido à Secretaria da Segurança Pública (SSP), que instalou ali o Presídio Militar (Presmil) e duas unidades administrativas do Corpo de Bombeiros.
“Na pesquisa, foi possível observar como o poder e o saber se entrelaçam na construção de verdades sobre a loucura, influenciando diretamente as políticas de saúde e as práticas médicas. Mesmo com todas as dificuldades de acesso aos materiais, perdidos ou sequer produzidos acerca dos segredos manicomiais”, analisa Amanda, pontuando que o Adauto Botelho teve um papel “revolucionário” enquanto foi parte do sistema manicomial. “Nem o mais novo, nem o mais velho, mas um dos mais conhecidos, que era conhecido popularmente como lenda urbana por todos os absurdos que aconteciam no Hospital”, define ela.
A desativação do Adauto Botelho ocorreu no contexto da Luta Antimanicomial, que resultou na Reforma Psiquiátrica de 2001 e deu início à substituição dos manicômios pelos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). Na ocasião, movimentos sociais e profissionais da saúde mental questionavam o modelo asilar de tratamento, considerado desumano, ineficiente e marcado pelas condições precárias e pela rotina de abandono e violência nos hospitais psiquiátricos. Para Amanda, a pesquisa reforça as convicções de que o modelo manicomial é incabível nos dias de hoje, com o avanço de técnicas mais humanizadas de terapia e tratamento para a saúde mental, baseadas principalmente no acolhimento e na convivência familiar.
“Eu espero que a pesquisa tenha grande impacto na comunidade acadêmica na saúde, que compreendendo de maneira crítica as influências no processo de institucionalização, possa se fazer mudanças no sistema atual de cuidado com a saúde mental. Que os sistemas manicomiais sejam recusados mesmo em suas formas mais sutis. Sendo esse nosso maior objetivo, auxiliar na elaboração de um projeto de desinstitucionalização que fuja dos ‘desejos de manicômio’, a lógica institucionalizante que ainda assola os serviços de saúde”, argumenta a psicóloga.
Futuramente, a pesquisa de iniciação científica deverá ser revisada e transformada em artigo científico para publicação em revistas especializadas. Mesmo após concluir o curso de Psicologia na Unit, Amanda pretende fazer o mesmo estudo detalhado em todos os antigos hospitais psiquiátricos que funcionaram em Sergipe, o que ela já queria fazer na época da faculdade, e que poderá adotar como tema em uma futura dissertação de mestrado. “O que me atrai é a possibilidade de unir a Psicologia e a História, minhas duas grandes paixões. Além de trazer todo pensamento crítico que carrego com orgulho diariamente”, concluiu.
Autor: Gabriel Damásio
Fonte: Asscom Unit